domingo, 31 de janeiro de 2016

A inconstitucional incoerência


Não será inverosímil presumir que num dos órgãos onde mais se prossegue, invoca e afirma a verdade, possa acontecer, grosseira e escandalosamente, a mentira.
Não é, igualmente, inverosímil constatar que nos locais onde mais se trabalha, enuncia e procura a saúde, se assuma consistente e definitivamente a doença.
Não será, ainda, inverosímil acreditar que onde mais determinante é observar e traduzir a coerência, mais se sobrestime a incoerência.
Há dias, num dos programa/debate subsequentes à eleição do próximo Presidente da República, dois constitucionalistas, assim ditos pela apresentadora e não contrariado pelos próprios, debatiam, a determinado tempo, a inconstitucionalidade ou constitucionalidade do último ato do atual Presidente da República relativo a uma Lei da Assembleia da República.
Lembravam, do alto da sua cátedra, que os tempos constitucionais se contam seguidos e, assim, se o documento foi enviado a 30 de dezembro, então seria inconstitucional, mas se foi remetido a 4 de janeiro, então seria constitucional.
Perguntei-me, na altura, não ignorando a relevância e caráter perentório dos prazos no exercício do direito, como se comportariam estes dois ilustres constitucionalistas perante um ou mais cidadãos que, não obstante o seu desconhecimento, possam viver sem abrigo em alguma cidade portuguesa.
Amanhã, o primeiro sucederá ao último, mas não será incoerente, pois o calendário não carece de interpretação constitucional e está definido desde tempos imemoriais.

Jorge Ventura




sábado, 10 de outubro de 2015

Cultura, razão e emoção

“ Corrigimos a tua obra, baseando-a no milagre, no mistério e na autoridade.”
Quando Dostoiévski, na obra Os Irmãos Karamazov nos descreve o encontro de Jesus com o Grande Inquisidor, somos forçados a viver uma experiência subjetiva, emocional, que nos captura e nos força a viajar.
Percebemos, então, quão confusa pode ser a interpretação e a vivência de uma matriz social, ideológica e política.
A propósito das emoções e da viagem que invoco, atrás, constato que, não obstante o direito constitucional à educação e à cultura, não fosse a referência à fruição da criação artística, não seria possível vislumbrar na maioria dos documentos e textos que nos são disponibilizados, quer em sede de proposta quer em sede de programa ou plano de ação, a relevância e a importância que tem e deve ser legada à cultura, à arte e à sua criação.

Perceber que para além dos fenómenos económicos da criação de riqueza, da distribuição da mesma, da poupança e do consumo, mesmo num tempo de exageros, de disrupção e de propensão para o supérfluo, é fundamental, na definição das políticas de prossecução da melhoria da qualidade de vida dos cidadãos e da fruição do direito à igualdade de oportunidades de acesso à efetivação de um quotidiano digno, enriquecedor e feliz, estimular as experiências intelectuais condicionadas pelo acesso à educação e à cultura de modo mais extenso e “sério”, catalisa de modo substantivo a esperança num futuro mais solidário, tolerante, livre e justo.

sábado, 26 de setembro de 2015

Vulgaridades

Aproxima-se um tempo de decisão, de privilégio, de ilusão.
Antes, repetem-se convicções, promessas, ilusões. Antecipam-se ações, decisões, conclusões.
Captura-se o futuro. Invoca-se o amanhã, evocando, recorrente e constantemente o ontem.
Denunciam-se estratégias, presumidas, conhecidas, partilhadas, camufladas. Enunciam-se interesses, conjugando altruísmo, transparência e competência com o nós, reservando a conjugação do egoísmo, opacidade e incompetência, para o eles.
Confundem-se conceitos e subvertem-se preceitos.
Triste, triste teatro nos é dado a assistir.
Ouço, neste tempo, que antecede o outro, de decisão, de privilégio, de ilusão, doutos protagonistas, confundirem, de modo grosseiro e escandaloso, a noção de estado, de nação, de centro, de decisão, com consequências nefastas para a correta participação e efetivação do privilégio de ser e pertencer a este estado, nação, que, não obstante os erros, deve ambicionar a consecução de politicas e decisões que traduzam a razão de ser o conjunto solução da equação cuja variável não pode ignorar a nobreza adstrita a cada cidadão.


Amanhã, amanhã serei cidadão
Terei identidade, número, cartão
Estou convocado, ouvir-se-á o meu nome
Terei poder, direito, razão

Amanhã, amanhã serei cidadão
Serei nobre, mesmo sendo pobre
Igual, com identidade, número, cartão
Terei poder, de voto, de decisão

Depois, depois não
Terei identidade, número, cartão
Terei direitos, deveres, opinião
Não estarei convocado, serei afastado, haverá proteção

Depois, depois não
Sendo pobre, serei nobre, povo
Diferente, sem rosto, expressão
Não terei poder, de voto, decisão

Amanhã e depois – Jorge Ventura







sábado, 5 de setembro de 2015

Quero, Posso, SIRVO – Prerrogativas

“ Eu sou o caminho, a verdade,…”; “ Eu sou a luz do mundo…”.
Num acesso de leviandade e corrupção da minha condição de homem e cidadão, que tomo como um momento de distração, pensei subordinar o pequeno texto que, agora, redijo, ao título, Eu Quero,….
Esse momento, não obstante traduzir um episódio de limitada duração, representou um, mais um, dos inúmeros alarmes que, recorrentemente, me confrontam com a banalidade que me carateriza e, que tento, também reiterada e pretensiosamente, contrariar.
De imediato, porquanto a autoridade do eu, não ignorando a singularidade que lhe está associada, é prerrogativa dos homens únicos, corrigi a intenção, alterando, decorrentemente, o início do texto.
Ouso, assim, evocar duas expressões que, sendo para mim axiomáticas, foram enunciadas num tempo onde todas as hierarquias humanas vigentes foram subvertidas.
“ Os últimos serão os primeiros…”.
A realidade com que nos confrontamos quotidianamente, experienciada ou percecionada através dos diferentes suportes de difusão de informação, traduz, frequentemente, à imagem da minha distração, a subversão da moral social em que se alicerça a noção ética de humanidade, de sociedade, de Homem.
A ideia, avançada, desde logo, por alguns Filósofos da Grécia Antiga, de que é exemplo Aristóteles, que aconselha que nos comportemos com os outros como gostaríamos que eles se comportassem connosco, corroborada pelo Filósofo latino Séneca, que tendo sido conselheiro de Nero, recomenda que se distribuam os lucros ao povo da mesma forma que gostaríamos de os receber, determina que se entenda o exercício das prerrogativas de decisão, não como a fruição do direito de ordenar, mas como o dever de servir.


segunda-feira, 6 de julho de 2015

O NÃO Grego e a História da Civilização

O Estados, o Estado, que somos nós e os nossos interesses e ímpetos, multiplicados para a prossecução da organização, defesa, soberania, ordem e riqueza, tornaram-se, tornam-se fortes quando a sua segurança foi ou é garantida pela lealdade dos seus membros, num grupo federado eficaz e protetor.
É assim, desde a origem da civilização, num desafio constante, onde a opinião pública, decorrente da divisão, do medo, da apatia, e do culto (universal) da obtenção de vantagem e riqueza, perde força, legando à fertilidade da incompetência, expressão abusiva, à qual a história tem legado protagonismo, o definhamento da evolução e desenvolvimento social.
A história ensina-nos que o excesso, os excessos, dão origem à escassez. A decadência moral da Roma antiga sob Nero e outros imperadores, foi seguida pela ascensão do cristianismo, constituindo a sua adoção e proteção por Constantino, uma fonte salvadora da ordem e da decência.
“O período que mediou entre o nascimento de Péricles e a morte de Aristóteles”, escreveu Shelley, cerca de 1820, “é (…) o mais memorável da história do mundo”. Atenas dominava essa época da história da civilização, porque conduzira os Gregos à vitória sobre a Pérsia em Maratona (490 a.c.) e Salamica (480), emergindo dessas adversidades com meios para controlar os seus antigos aliados e os seus meios financeiros.
Hoje, num outro tempo, no nosso tempo, Atenas volta a ser protagonista.

À Europa



segunda-feira, 15 de junho de 2015

Nada, como eu

Confesso que me comovem os Homens simples, de imagem e postura esculpidas no ateliê do sorriso fácil e olhar expressivo, ávidos de atenção, de momentos de subversão do status da ausência, dolorosa, porque decorrente da indiferente presença de outros, de confusa proveniência, mas de diversa proeminência, postura, e até, prepotência.
Esses, os que me comovem, cujo tempo socalca o rosto, endurece a pele, subtrai o esmalte e ofusca o brilho, mendigam o tempo, de partilha, comunhão, participação.
Presentes, estão ausentes, ocupados em tarefas importantes, relevantes, que não dispensam o uso da mão, gretada e forte, desses, ausentes, sempre presentes, mendigos do tempo, de atenção, reconhecimento, gratidão.
Esses, os que me comovem, ocupam o espaço, vazio, na multidão da indiferença, olham em redor, com olhar expressivo, e percebem a ausência da consciência da sua presença, são nada, nadas, numa solitária existência, individual ou adicionada, mas cuja soma é, invariavelmente, nada.
Suceder-se-ão os dias, os meses, os anos, e esses, os que me comovem, limitados no tato, no afeto, na atenção, continuarão a ver subtraída a razão adstrita à nobre ilusão de, sendo o que são, serem, como os outros, parcelas de uma mesma adição.

Aos Homens simples


sexta-feira, 12 de junho de 2015

Da inexorável timidez ao inelutável disfarce

Hoje quero ser injusto, desculpa. Hoje, consciente e deliberadamente quero ser injusto, só hoje, agora, agora que não estás presente, agora que te fazes notar, ausente.
Quão falsas a humildade e discrição com que te aproximas, invades o espaço, condicionas os dias, discreta, protegida, escondida, sempre escondida, deixando que outros, na efetivação de uma seleção criteriosa de pessoas, circunstâncias, momentos ou, até ele, lindo, vermelho, gigante, escaldante, num qualquer fim de dia junto ao mar, façam sentir a tua presença, a tua vontade de ser extasiante, querida, desejada, apaixonante, para depois, quando partes, deixares o rasto da ressaca da ausência, do medo, medo de não poder ter, ver, ser.
Chegaste cedo, muito cedo, à primeira alvorada, disfarçada, sempre disfarçada, de um beijo, um abraço, de uma cócega, que de tanto rir, quase torturava.
Ficaste ali, junto de mim, percebendo que a minha imaturidade não permitia ver, perceber, sentir o que estava a acontecer, porquanto sem exigência ou contrapartida estavas presente, desde que acordava até que me deitava, embalado pelo teu abraço camuflado, disfarçado de um beijo, um sorriso e um desejo.
Fui injusto, sei agora. Mas tu, madura, vivida, sempre discreta, escondida, nunca me alertaste, nunca me chamaste, à razão, à razão de ser grato, justo, consequente, presente.
Por isso, hoje, hoje quero ser injusto, contigo, que nunca tiveste a coragem de aparecer sem o disfarce de um beijo, um abraço, um amigo, num momento meu, só meu, contigo.
Desculpa, desculpa a dureza do discurso, mas só quero, sendo justo, poder agradecer o quão, mesmo quando ausente, te fizeste sentir presente.


Carta à felicidade.