domingo, 31 de maio de 2015

Obrigado

Regresso a outubro de 1976, a uma manhã como outras, onde, acompanhado, protegido, asseado, humildemente asseado, de mochila aos ombros, na qual um cão, um caçador e uma espingarda, tatuados num plástico de má qualidade, que revestia o papelão de que era estruturada, descobri mais tarde, que me acompanhariam, num vai e vem, diário, tranquilo, despreocupado, modesto, iniciava um percurso, de responsabilidade, sucessos, insucessos, vitórias, derrotas, de vida.
Aldina, Professora Aldina, figura austera, distante, fria, também próxima, meiga, maternal, num paradoxo alicerçado na missão, nobre missão, atriz, num palco, estrado, vazio, desprovido de cor, adereços, ficção, onde dia após dia, se ensinava, aprendia, ria, chorava, sentia, medo, proteção, ilusão, frustração.
Aldina, professora Aldina, tantas vezes reconhecida, ignorada, louvada, esquecida, mas sempre, responsável, corresponsável, comprometida e, por mim, por tantos, sempre lembrada.
Aos meus professores.


(Des)materialização da imagem

Conquistámos mundos, novos mundos, transpusemos obstáculos, cruzámos cabos, tormentas, rasgámos mares, desventrámos oceanos, perseguimos luas, planetas, galáxias, desejamos ver, captar imagens, percecionar estímulos, violar fronteiras, vencer o opaco.
Temos pressa, urgência, de conquistar o espaço, os espaços, animados, inanimados, reais, ilusórios, acreditamos que “ uma imagem vale mais que mil palavras”, como pensava Confúcio.
Vemos e ouvimos, rápido, muito rápido, ignorando que o que nos chega através dos sentidos são “realidades” em bruto, “imagens” vazias, ocas, desprovidas de sentido, propriedade, coerência, congruência, alma, nomeação, identidade.
Somos nós, porque pensamos, logo, porque existimos, carregando referenciais, num cartesianismo empírico, que construímos, damos corpo, alma, nomeação, identidade, expressão, tangibilidade, ajudados pela luz, fonte de vida, que nos ilumina os dias e dá cor ao vácuo.
Somos nós que lemos um livro, observamos uma TAC, olhamos o céu, que lhe conferimos verdade, cor, corpo.
Uma palavra pode valer mais que mil imagens.


quinta-feira, 28 de maio de 2015

Desesperança num poema heterodoxo

Sentir-te, perceber-te, inspirar-te
Presença cómoda, maternal, fiel
Acomodar-te, ouvir-te, escutar-te
Tranquilizar, poder pensar, sonhar

Vislumbrar futuro, vida, sobrevida
Reviver memórias, sorrir, acreditar
Sentir-se inspirado, confiante, motivado
Vivo, iludido, preparado

Perceber que não, sentir o contrário
Escutar a ansiedade, o silêncio, a ausência
Ficar intranquilo, triste, perturbado
Recear ter medo, não estar preparado

Deixar de sonhar, de vislumbrar futuro
Viver o presente, amarrado ao passado
Sentir desconforto, dor, estar abandonado
Não acreditar, sentir-se vazio, acabado

Desesperança – Jorge Ventura




terça-feira, 26 de maio de 2015

19, um primo, distraído, na aritmética da vida

Inexoravelmente, enquanto me ocupo da redação do pequeno texto, agora, partilhado, o tempo, o meu tempo, graciosamente doado, legado, adicionado a uma soma de aferição difícil, de finitude axiomática ou, de infinitude dogmática, vai sendo consumido, à imagem do oxigénio, fonte de energia e de vida, celular, pluricelular, complexa, humana, que, concomitantemente inspiro, consumo, transformo num metabolismo tão assintomático quanto a álgebra do tempo.
Distraído, não equaciono as variáveis enunciadas, traduzidas pelo volume de oxigénio consumido por unidade de tempo, porquanto parecem não importar, como se fossem extrínsecas à vida, ao tempo, ao teorema da existência, de demonstração e aplicação complexas.
Vivo, sobrevivo, alheado, afastado, distante do que é importante, determinante, fundamental, vital.
Distraído, continuo o caminho, acreditando que a vida, se regulará por si, onde o eu, não se distinguirá de uma realidade metafísica, ontológica, concebida como tendo uma natureza comum, inerente à condição de ser, enquanto ser, independente de mim.
Distraído, distancio-me, num afastamento contínuo, do que importa, do que alicerça a individualidade, a vontade, a razão, de ser, de sentir, de ganhar e de perder, corolários óbvios do que significa viver.
Será o fado, o meu fado, o destino, que me traz à memória a importância da décima nona letra do alfabeto, alicerce da tantas vezes cantada, traduzida, vivida convicção de que o tempo, não obstante adicionado, pode ser apenas, passado.

Prosa à Saudade.